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University of Toronto
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►
OBRAS DE EUGÉNIO DE CASTRO
ChrystallisaçÓes da Morte, 1884.
Canções d' Abril, 1884.
Jesus de Na^areth, i885.
Perumbram. 1887.
Horas tristes, 1888.
Oarislos, i.H edição, 1890; 2 a edição, 1900.
Horas, i.a edição, 1801; 2.* edição, 10.12.
Silva, Ia ed \,á , i8g4 ; 2 * eaição, 1911.
Jnterlunio, 1." edição, i8<m ; 2 a edição, 1911.
Belkiss. i.a edição, 1894 ; 2.» dição, 1910.
Tir estas, iSg5.
Sagramor, 1895.
Salomé e outros poemas, 1.» edição, f?9Ô ; 2.» edição, 1911.
^4 Nereide de Harlem, 189').
O /?e/ Galaor, 1897.
Saudades do Céo, 1899.
Constança, igoo.
Depois da ceifa, igoi.
Poesias escolhidas, 1902.
O melhor retraio de João de Deus, 1900.
.4 Sombra do Quadrante , 1906.
O ,4ttHe7 Je Polycrates, 1907.
^4 Fonte do Satyro e outros pormas . 1908.
Poesias de Goethe, 1909.
O Fí/Ao Pródigo, 1910.
Noticia histórica e descriptiva dos principaes objectos de ourivesa-
ria existentes no Thesoiro da Se de Coimbra ( de collaboraçáo
com A. A. Gonçalves), 1911.
Guia de Coimbra, 1916.
O Cavaleiro das mãos irresistíveis , 1916.
O CAVALEIRO
DAS
MÃOS IRRESISTÍVEIS
CONTO EM VERSO
POR
EUGÉNIO DE CASTRO
COIMBRA
F. FRANÇA AMADO, EDITOR
1916
1)esta edição fe?-se uma tiragem especial
de seis exemplares em papel Whatman,
numerados e rubricados pelo autor.
AO GRANDE ESTATUÁRIO
ANTÓNIO TEIXEIRA LOPES
«... las hermosas manos dei Conde
Don Garci Fernandez,conquistavan
la inclinacion de todas las mugeres,
por lo qual las encubria aquel Prin-
cipe quando se las podiam ver per-
sonas de su atencion. »
D. Luiz de Salazar y Castro,
Historia de la Casa de Lara, 1. 1,
pag. 3a.
Uia de Santa Clara.
Na janela
Já as frinchas se azulam como veias,
Quando Dom Sancho Sánchez de Moscoso,
Depois dum sono regalado, acorda
Ao cristalino repicar dos sinos,
Que tilintam na torre do mosteiro
Onde, entre círios, orações e rosas,
As cinzas dormem da Rainha Santa.
l6 O CAVALEIRO DAS MlOS IRRESISTÍVEIS
Defronte, em Coimbra, os sinos da cidade
Associam-se á festa : uns galrejando
Como creanças num jardim em maio;
Outros, de ansioso, de saudoso timbre,
Desatando-se em místicos adeuses,
Em despedidas para a eternidade ;
Outros, em Santa Cruz, cantando glória ;
E mais em cima, dominando-os todos,
Como um aviso ás almas tresmalhadas,
Os da Sé, retumbando com ameaças
E rouquidões de temporal distante . . .
Tão doce despertar e tão alegre
Não o tinha Dom Sancho desde a hora
Em que um fatal desastre aos pés da morte
O arremessara.
Desta feita, o moço
Acordava sem dor's, antes sentindo
Um bem-estar delicioso . . .
Espreguiçou-se
Com a prudência dos estropiados,
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 17
E a cada movimento ia notando
Que voltava ao que fora, que de novo
Podia abrir os braços livremente,
As pernas esticar, mexer o tronco,
Sem já sentir uma ligeira sombra
Das guinadas cruéis que longo tempo
O tinham consumido nesse leito,
Arrancando-lhe gritos aflitivos
E encharcando-lhe as fontes com suores . . .
Renascia. Quebrava-o inda, é certo,
Esse torpor que na convalescença,
Quebrando o corpo, quebra os maus desejos,
Em troca suscitando honestas ânsias
De calmos dias, de leais afectos ;
Sentia ainda os olhos fatigados
De tanto haverem procurado embalde
Uma estrela nas trevas da agonia ;
Mas ao contrário das manhas passadas,
Em que, rendido, desejava apenas
Dormir, dormir indefinidamente
Na abafada penumbra dessa alcova,
l8 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
O que elle agora, inquieto, apetecia
Era a luz d'oiro e o ar livre, de diamante.
Das nebrinas rosadas do futuro,
Lindo cantar chegava aos seus ouvidos,
Penugento cantar d'alma sereia,
Anunciando em notas, que eram mimos,
As doçuras dum próximo noivado ;
E Sancho, embevecido, adormecendo
Desse canto no berço flexuoso,
Cerrava os olhos deliciadamente,
E deliciadamente via ao longe
De Beatriz a virginal figura
Deslisando graciosa entre açucenas,
Ao cristalino repicar dos sinos . . .
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS IO,
II
Pouco mais tinha Sancho de vinte annos.
órfão de pai quando contava doze,
Com sua austera mãe se recolhera
A um severo palácio em Tordesilhas,
E ahi vivera como bom fidalgo
Em descuidosa mas honesta estúrdia,
Cavalgando, monteando e namorando,
Até que um dia, aos incessantes rogos
Dum primo seu, D Pedro de Mendanha,
Brioso alcaide-mór de Castro-Nunho,
Do lusitano rei seguindo as partes,
20 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Na guerra se meteu, quase fraterna,
Que em Toro veiu a ter incerto fecho.
Finda a batalha, achou mimoso exílio
Em Barcelos, nas margens nemorosas
Do Cávado sereno, cujas aguas
A cada instante augmentam engrossadas
Pelas saudosas lagrimas que verte
Deixando a cada passo um encanto novo.
Soube elle aí que os bens que possuía
Em Castela, lhos tinham confiscado
Os católicos reis. Vendo-se pobre,
Ele, que dias antes poderia
Aos alqueires medir o oiro e a prata ;
Vendo-se aí sem lar, tendo possuído
Soberbos paços de ameadas torres,
Onde talvez ainda, nessa hora,
Se visse trapejar ao vento morno
A bandeira co'as armas dos Moscosos ;
Vendo-se aí sem pão, tendo deixado
As suas tulhas cheias, que podiam
A farta sustentar por mais dum ano
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 21
Uma província inteira ; então lembrou-se
De uma tença pedir a Afonso Quinto,
E com essa intenção pôs-se a caminho
De Santarém, onde poisava a corte.
Passando em Coimbra, com surpresa alegre,
Lá encontrou patrícios e parentes,
Exilados também, que o receberam
Como um querido irmão resuscitado.
Sancho levava pressa, impaciente
De alcançar bom despacho ao seu pedido ;
Mas tão felizes, tão risonhas horas
Saboreou ali, em cavalgadas,
Banquetes e serões, que a breve trecho,
Mandando ao demo tenças e negócios,
Resolveu demorar-se uns tantos dias
E arranchar com os mais numa caçada
Aos javalis, caçada de fidalgos
De que era promotor activo e guapo
Um certo Ruy de Sá, dos Sás illustres,
Tão destros em terçar guerreiras armas
Como hábeis em compor sonoros versos.
22 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Deviam ser uns vinte os cavaleiros,
Que em luminoso amanhecer de julho
Sairam da cidade a trote largo.
Atravessada a ponte, para a esquerda
Tomaram com marcial desinvoltura,
E já da EspYança o monte iam subindo
Quando o vivo morzelo de Dom Sancho,
Retrocedendo num galão abrupto,
Rompeu, desenfreado, em correr doido.
Era Sancho um acabado cavaleiro,
Mas nesta occasiao fatal, de nada
As equestres manhas lhe serviram :
Chapou-se-lhe o cavalo, e o pobre moço
Violentissimamente ei-lo cuspido
Sobre os brutos calhaus duma pedreira,
Onde os amigos foram encontrá-lo
Exânime, no chão, com um pé estroncado,
Go'as mãos escalavradas e co'a fronte
Amassada, a sangrar por duas gaivas.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 23
III
Perto dali ficava a nobre casa
De Dora Guterre Lopes que, apiedado
Por tal desgraça, recolheu o frido
E o ajudou a deitar na própria cama,
Enquanto a creadagern, de corrida,
Abalava á procura de Heitor Pires,
Ervanário, carcunda e feiticeiro,
E que além disso, entre Mondego e Douro,
Tinha fama de ser o mais sabido
Algebrista da terra portuguesa.
24 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Quando os sentidos recobrou Dom Sancho,
Já o grotesco Heitor se fora embora
Depois de lhe encanar o pé dorido
E de lhe haver bandado subtilmente
Cabeça e mãos com alvas ligaduras.
De branco mascarado, do seu rosto
Só os olhos se viam, olhos negros,
Pasmados e febris, quais os do infante
Que exposto foi numa azinhaga á noite,
E que ao luzir da estrella d'alva chora
Sem consciência da dôr que o mortifica ;
Só seus olhos se viam e seus lábios
Repuxados num ricto doloroso
Que descobria a cintilante alvura
Dos seus dentes magníficos, de lobo.
— « Onde estou eu f » disse ele, percorrendo
Do tecto, com a vista, as grossas traves,
E as paredes forradas de precioso
Guadamecil, cujos lavor's metálicos
Vivamente brilhavam na penumbra
Tépida e aveludada do aposento.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 25
Sobre um solene escano de carvalho,
De ferro chapeado, qual se fora
Porta de cubicada fortaleza,
Uns calções, um pelote esfarrapado,
E um tabardo poeirento, todos cheios
De sangue coagulado, rediziam
Da desastrosa queda a violência.
— « Onde estou eu ? »
Torcendo-se com dores,
A máscara voltou e viu ao lado,
Ao pé de si, um velho cabeludo
De gigantesco mas risonho aspecto,
Imóvel e vestido gravemente
Com golpeado gibão de setim preto,
Sobre o qual faiscava uma cadeia
De fuzis cravejados de esmeraldas.
Era o bom Dom Guterre, o nobre alcaide
De três fortes castelos e abastado
Senhor de quatro vilas portuguesas,
Do conselho d'el-rei e pertencente
A veneranda estirpe de Azevedos.
20 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
« Como estaes f » diz a medo Dom Guterre.
— « Morro, morro de sede ! » volve Sancho.
Duma credencia, toma o ancião hirsuto
Um jarro castelhano d'alva prata,
Bem lavrado a cinzel, e enche uma copa
Que o doente febril bebe dum trago.
— « Mais ! Por piedade, mais I »
E esvaziada
Segunda copa, o moço os olhos cerra,
Deliciado momentaneamente.
Mas as dores recrescem de tal geito
Que, embora sofredor, o pobre Sancho
Já não tem mão em si que não prorompa
Em altos gritos de animal trilhado.
Três longuíssimas noites e três dias
Deslisaram morosos como lesmas,
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 1~]
Sem que a tanto sofrer chegasse alívio.
E só depois, já quando se esgotava
Do suspeito ervanário o misterioso
Repertório de emplastros e de unguentos,
É que Sancho cobrou ténues melhoras,
E conheceu a extrema caridade
Dessa nobre família que o acolhera
Como a dilecto filho ha muito ausente.
Secundando o fervor de Dom Guterre
No empenho de abrandar as dor's de Sancho,
Que eram dor's de ferido e expatriado,
Com materna piedade, ao pé do leito,
Docemente velavam, noite e dia,
Do bom fidalgo a majestosa esposa,
Dona Mór de Menezes, sua filha,
A suave Beatriz, e uma parenta,
Dona Yseu de Aboim, velha senhora
Que, tendo enviuvado e sendo pobre,
Naquelle paço generoso entrara
Onde as portas do céo abria a todos
Confeccionando celestiais compotas
E angélicas, translúcidas gelêas.
28 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Dia sim, dia não, era infalível
Um irmão de Dom Guterre, o rubicundo
Dom Bento da Santíssima Trindade,
Frade crúzio e varão de grandes letras,
Tão grande canonista como exímio
Cultor da genealógica ciência.
Quando ás eternas noites desveladas
Outras, mais bem dormidas, sucederam,
E a estas, mansos, aliviados dias,
De Sancho o quarto enorme transformou-se
Em locutório amável da família.
De lá não se arredava um só instante
O hercúleo Dom Guterre, e as três senhoras
Lá se acolhiam do calor da sesta,
Conversando, bordando e preparando
Os fios com que Heitor pensava o doente.
Era o bom Dom Guterre tão brilhante
Conversador como na mocidade
Bravo guerreiro fora ; e assim, no intuito
De arejar a loquela e ao mesmo tempo
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 20.
De distrair o hospede, contou-lhe
Em breve prazo toda a sua vida,
Longa epopêa de façanhas altas
Com sangue moço e generoso escritas
Na Alfarrobeira e na caiada Ceuta ;
Epopêa marcial, entrecortada
De episódios d'amor que Sancho ouvia
Com intVesse infantil, prefrindo a todos
Aquelle em que o fidalgo lhe pintava
Certa escrava d' Arzila, esbelta e lânguida,
Dançando á tarde religiosas danças,
Ao som do adufe que rufava um moiro,
Junto duma cisterna, entre palmeiras.
Depois de ouvir, chegou a vez a Sancho
De dar conta de si : sendo tão novo,
Pouco tinha a dizer, mas esse pouco
Bastou para que o crúzio descobrisse
Que era com Dom Guterre quarto primo
Do joven castelhano.
Nessa noite,
Com que ajoelhada adoração e enlevo,
30 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Com que ternura Sancho ouviu a loira
E láctea Beatriz sair da alcova
Dizendo afável : — « Boas noites, primo ! »
IV
Passou-se isto na véspera do alegre
Dia de Santa Clara. O moço amante
Pensando em Beatriz cerrou os olhos,
Dormiu com a inocência dum menino,
Vendo-a constantemente nos seus sonhos,
E a pensar nella despertou ditoso
Ao cristalino repicar dos sinos.
Amava-a ? Sim. Humilde e fortemente
A amava, embora mal a conhecesse . . .
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 3l
Mal lhe tinha falado um dia ou outro,
Mas a sua lindeza era tão pura,
A sua voz tão cheia de amavíos
E os seus amaviosos olhos verdes
Tão enluarados de candura e sonho,
Que tudo nella revelava logo
Um desses raros seres que, exilados
No mundo, vivem conhecendo apenas
Ânsias de perfeição e de beleza.
P'ra adivinhar os lúcidos tesoiros
De amor e mansidão que ella possuía,
Não precisara Sancho de falar-lhe,
De espreitar, deslumbrado, a sua alma,
De sondar seus mais íntimos desejos :
Bastára-lhe só vê-la aérea e branca,
Sempre alheada e loira qual se fora
Um anjo anunciador d'olhos aquáticos
Passando ao luar, numa missão divina.
Nunca Sancho sentira o que sentia.
Era mais do que amor, era uma alta
E funda adoração extasiada,
Um quase medo de a possuir um dia,
32 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Como se fosse um sacrilégio tê-la,
E um desejo infinito, uma ânsia doida
De sofrer toda a casta de martírios
Só p'ra alcançar o saboroso prémio
De oscular castamente, de joelhos,
Dos seus chapins de lhama a aguda ponta.
Assim pensava Sancho na penumbra
Da sua alcova, ao repicar dos sinos,
Quando viu, no rectângulo doirado
Da porta que se abrira de repente,
Recortada a figura de Anna Mosca,
Ama de Beatriz.
— « Como estaes hoje ? »
Diz a boa molher, no quarto entrando.
— « Deus te pague o cuidado ! » volve Sancho
« Ainda que eu de rojo vos seguisse,
« A ti e aos teus senhor s, a vida inteira,
« Nem metade da divida pagara
« Que vos devo . . .
« Tão bem passei a noite
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 33
« E sinto-me tão bem agora mesmo,
m Que já comigo concertei ha pouco
« Desta cama sair daqui a um instante. »
— a Louvado seja Deus t » atalha a serva :
« Grande boda, vereis, farão meus amos
« Festejando com gosto essas melhoras. . .
« Todos vos querem nesta casa . . .
— « Todos f »
Pergunta Sancho. « Todos ? E até mesmo
« Beatriz ? »
— « E porque não f Santa acabada,
« É um saquinho d' amor a sua alma,
« Saquinho aberto para toda a gente. . . »
— « E que eu quisera só p'ra mim aberto t »
Diz Sancho lá consigo. . . E continua :
— « Olha, falemos dela. . . Acho-a tão triste,
« Tão fora de si mesmo, que parece
« Que tra% a alma inocente noutro mundo. . . »
3
34 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
— « Tem na no céu », diz Ana ; « todos sabem,
« Senhor Dom Sancho, que ela quer ser freira,
« Meter-se em Santa Clara ... E lá estaria
« Ha muitos meses já, se o pai choroso
« Lhe não pedisse, quase de joelhos,
« Que o não deixasse enquanto fosse vivo,
« Que não partisse sem fechar -lhe os olhos ...»
Ouvindo tal e ouvindo ao mesmo tempo
O cristalino repicar dos sinos
Que em Santa Clara, na morena torre,
Chamando os fieis, anunciavam rindo
Místicos gozos, hálitos de incenso,
Doces eflúvios de esmaiadas rosas,
Suspiros d'orgao, d'embriagar fraguedos,
Doces palpitações de círios alvos
Reflectidas no oiro das casulas
E nas mansas safiras da custódia ;
Ouvindo tal, parecia-lhe, a Dom Sancho,
Que na sua cabeça desvairada
Ruía, aos golpes de cem catapultas,
Uma cidade imensa de cem portas !
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 35
Ana Mosca partira . . .
O cavaleiro,
Rendido por cruel abatimento,
Longo espaço ficou cismando triste
Na prematura ruína dos seus sonhos . . .
— « Ter Deus como rival t » dizia Sancho,
Cheio de íntima dor ..." Deus inclemente,
« Se para Esposa a tinhas elegido,
a Porque è que tão formosa ma mostraste f
« Porque não morri eu antes de vê-la ? »
Mas de repente, em revoltado assomo,
Sobrepondo ao desânimo do amante
O audacioso brio do soldado,
A si mesmo se anima e se encoraja,
Arquitectando traças engenhosas
De conquistar, soberbo, a torre ebúrnea
Dentro da qual Beatriz se recolhera.
Enterrando-se viva num mosteiro,
Sacrificando os seus cabelos d'oiro,
Deixando o mundo, o que buscava ela ?
36 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
— Aproximar-se da divina gloria ;
Mas o amor, o amor forte e verdadeiro
Também conduz a Deus (pensava Sancho ) ;
O amor verdadeiro é uma sagrada
Comunhão de bondade e de beleza,
E aos ouvidos de Deus, sorvido e dado
Num sublime delírio de ternura,
Um longo beijo é uma oração fremente,
Uma ante-visão da glória eterna.
Não, não queria Sancho desviá-la,
A sua amada, do bom Deus piedoso,
Mas só que ela mudasse de caminho
Para ascender á Bemaventurança ;
Que o aceitasse como companheiro
Nessa radiosa, mística viagem
Que os dois fariam, trémulos, seguindo
Por doce estrada de clarões e aromas,
Coroados de flor's, rezando beijos,
E erguendo á noite, como grandes fachos,
Nas próprias mãos os corações ardentes.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 3j
Nessa manhã, depois do curativo,
A rogo seu, foi Sancho transportado
Para uma sombra do jardim . . . Sentaram-nor
Entre coxins, num cadeirão de espaldas,
E aí lhe foi servido um lauto almoço
Cujas finas vitualhas rescendiam,
Tentando mortos, em sonoras pratas.
Dom Guterre abancara ao pé de^Sancho,
E comia também, falando sempre". . .
Sobre a mesa corria uma latada
Toda folhuda, donde a luz descia,
38 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Sedosa e mansa, como a dum santuário ;
E quando a viração morna e indolente
Prepassava entre os pâmpanos espessos,
No chão, a sombra azul, toda ocelada
D' oiro, como um pavão armado, tinha
Frémitos lentos e macios d'agua . . .
Do Mondego nos choupos, as cigarras,
Nos olivaes, as rolas gemebundas,
E sobre as alfazemas perfumadas
As doiradas abelhas sussurrantes,
Celebravam em coro a calma adusta . . .
Mas refrescando o ar, ali bem perto,
Uma fonte cantava, antiga fonte,
Aonde um São Miguel, de lança em riste,
Dominava um Diabo monstruoso
Cuja limosa boca vomitava
Uma espadana d' agua diamantina
— «Ah! como é bom viver ! .. . e quanto eu dera
« Para ter neste instante a vossa idade ! »
Disse o velho, enxugando o seu bigode
Que uma golada de espumoso vinho
De rubis orvalhara, e saboreando
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 39
O almoço e o dia com egual deleite . . .
— «O peor ... o peor é eu estar tão ruço ...»
Continuou ele com melancholia :
« Amigo, é para vós que está a vida í »
Dizendo isto, o bom e nobre velho
Olhava fixamente para Sancho
Cujo rosto, já sem as ligaduras,
Todo resplandecia de beleza,
Uma beleza insinuante e máscula
De procônsul romano, moço e forte.
Fitando Sancho demoradamente,
Reparando no corte imperioso
Daquela boca fresca e voluptuosa
Que dizia o desejo impaciente
De saborear da vida os frutos todos ;
Reparando no brilho desses olhos
Cheios de entusiasmo e de ousadia,
Uma esp'rança afagava Dom Guterre :
A espVança de que, em breve, sua filha,
Ao ver Sancho afinal desmascarado,
40 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Docemente vencida p'lo prestigio
De tão bela e radiosa mocidade,
Esqueceria os místicos projectos
Que, endoidecendo-a com subtis promessas,
Iam tramando o fim duma família
Das mais ricas do reino e mais gloriosas.
Foi animado dessa rósea esp'rança
Que ele dali se foi, tanto que ao longe
Viu assomar a filha.
Regressando
De Santa Clara, a moça caminhava
Branca e toda de branco, com uma túnica
Tão desataviada e tão modesta
Que mais par'cia um hábito de monja
Do que vestido de donzela nobre.
De precioso só nas mãos trazia
Umas pesadas contas d'ámbar pálido
Donde pendia um crucifixo d'oiro.
Estremeceu, ao vê-la, o cavaleiro
E ocultou vivamente no tabardo
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 41
Suas mãos entrapadas, não fosse ela
Com aqueles trambolhos desgostar-se.
Mas a fluida Beatriz vinha tão longe
Dos homens e da vida, que somente
O viu quando ao pé dele era chegada.
Como ave assustadiça, divisando
Pela primeira vez tão belo rosto,
Pára, corando, hesita, e só tem força
Para dizer com voz sumida e trémula :
— « Ah! ... como estais f »
— « Melhor, infelizmente. . . »
Diz o moço. E Beatriz, ingénua, volve :
— « Infelizmente ? »
— « Infelizmente, é certo,
Exclama Sancho com sincera angústia,
« Infelizmente, porque, emfim curado,
« Sairei daqui e deixarei de ver-vos l »
Uma onda de pudor soergue os seios
Da tímida Beatriz, tinge de rosa
Suas pálidas faces e mareja
De lágrimas rogais seus olhos verdes .
4» O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
— « Ofendi-voSy bem vejo . . . Perdoae-me !
Dizia o cavaleiro humildemente . . .
« Perdoaime, Beatri^ . . . Não vos mereço.
« Ás estrelas não chega a voj dos sapos ... »
De olhos no chão, Beatriz petrificada
Era uma estátua ali. Penhor's de vida,
Só se lhe viam no arquejar do peito
E nas brilhantes, silenciosas lágrimas,
Que lhe corriam copiosamente
Das transparentes pálpebras descidas . .
o Perdoai-me, Beatriç t » tornava Sancho.
Chorando, nada a moça respondia.
De súbito, porém, limpando os olhos
E animada por essa misteriosa
Força com que a fé viva vigoriza
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Os ser's mais débeis nos mais rudes lances,
Ei-la que diz com singular firmeza :
— « Meu muito amado irmão em Jesus-Christo,
« De joelhos vos peço e vos suplico
« Que em mim vejais apenas uma escrava
* Do alto Deus a quem fif solemnes votos ! »
E afastou-se, osculando as contas d'ámbar . . .
VI
Pouco depois, num abafado dia
De suão abrasador, roncava o ilustre
Dom Guterre, dormindo a sua sesta,
Quando acordado foi p'la voz do obeso
Dom Bento da Santíssima Trindade.
44 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
— « A pé l A pé í dizia o crúzio. Erguei-vos
« E abri esses ouvidos bem abertos,
« Que vos trago uma nova de importância I »
O fidalgo sentou-se então na cama,
Os olhos esfregou, espreguiçou-se,
Três vezes bocejou e, finalmente,
Como quem salta, contrariado, a um tanque,
Em fralda, para o chão pulou num pulo
Que fez estremecer a casa toda.
Numa vasta cadeira espapaçado
E enchugando o cachaço d'elephante
Onde o suor brilhava em camarinhas,
Dom Bento, quando viu o irmão vestido,
Co'a fofa e guedelhuda mão puxou-o
Pela golpeada manga do pelote,
E gravemente disse-lhe em voz baixa :
— « Esse primo Dom Sancho, é necessário
• Pô-lo a andar quanto antes desta casa ! »
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Abrindo a boca num bocejo novo,
Dom Guterre os seus olhos arregala
Sem nada perceber.
Então o crúzio
Elucida-o :
— « Sabeis como Dom Sancho
« Ha dias me falou de seus maiores,
« E como do que ouvi deduzi logo
« O parentesco que com ele temos ;
« Mas o que não sabeis, nem eu sabia,
« É que esse moço, por seu pai, descende
■ Do celebrado e voluptuoso conde
x Dom Garcia Fernándej, alto príncipe
« Cujas mãos diabólicas possuíam
« O funesto poder, o poder mágico
« De endoidecer d' amor as mulher' s todas,
« Todas I velhas e novas, sem difrença,
« A ponto que ele próprio as escondia,
« Para evitar tragédias, se avistava
« Qualquer nobre matrona já caduca . . .
« Esse conde morreu, é certo, ha muito,
« Porém, o venerando manuscrito
« Onde forra geei estas noticias
« Acrescenta — abri bem esses ouvidos,
46 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
« Que ê nisto que está toda a gravidade ! —
« Acrescenta que a mágica influência
a Das mãos de Dom Garcia continua
o Em todos os varões seus descendentes !
« Aqui tendes ! E agora com prudência
« Se quereis evitar um grande escândalo,
« Imponde sem demora o castelhano,
« E, antes disso, ordenai ao curandeiro
« Que não lhe desentrape as mãos p'rigosas
« Emquanto hóspede fôr deste palácio ! »
Com seu alto e risonho cepticismo
Dom Guterre exclamou, de mão na ilharga :
— « Pois quê ? acreditais nessas patranhas f »
— « Patranhas, não ! » atalha logo o crúzio,
Aprumando-se, grave, na cadeira :
« O auctor do manuscrito onde li isto
« Foi um sério varão, honesto e sábio,
« Incapa? de mentir ; e a rajão mesmo
« Nos observa que o caso, sendo estranho,
« Bem pode ter seus visos de verdade.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 47
« Reparai bem : por seu variado aspecto,
« P'la própria cor e pelos movimentos,
a Mãos ha que são fieis espelhos d' almas.
« Ha mãos contentes, como ha mãos bisonhas,
« Mãos frívolas e mãos meditativas,
« Umas ingénuas, outras dtpravadas.
« Eco e instrumento de paixões diversas,
a É a mão que maldif e que abençoa,
1 É a mão que mata e a mão que acaricia,
« É a mão que sustém e que despenha ;
« Jubilosa, se dá, triste, se pede,
« Lúbrica, ao afagar desnudo flanco,
« Piedosa, ao abrochar fria mortalha,
« Enérgica, empunhando um gládio heróico,
a Frouxa, embainhando uma vencida espada,
« Receosa, apalpando um filho doente,
« Vilissima, compondo atro? veneno,
« Puríssima, enfeitando um altar com flores !
« Vede que expressão vária as mãos acusam
« Conforme rejam, pálidas, erguidas,
« Ou se torcem, convulsas, com remorsos,
« Ou, estranguladoras, se enclavinham,
« Ou acariciadoras, se aveludam,
« Ou se espalmam, com os dedos distendidos,
48 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
« Numa suprema crise de amargura,
« Como as da Santa Virgem no Calvário l
« As mãos falam, irmão, as mãos revelam
« Tudo quanto cá dentro está escondido,
« E, quando eloquentes, tanto podem
« Conduçir-nos ao Céo como ao Inferno ! »
— * Se o que direis das mãos é verdadeiro,
Com ironia atalha o velho alcaide,
• Bem devo eu esconder estas que vedes,
« Não me vão elas chocalhar pylo mundo
« O saco de misérias da minfralma ...»
— o Por Deus ! senhor irmão, não tombeis d'isto ! »
Diz Dom Bento. « Oxalá que aqui em breve
« Não se junte a Desgraça co'a Vergonha t
« Cumpri o meu dever ! Ride á vontade
« Já que entendeis que o caso é para risos ...»
E, furioso, agastado, foi-se embora.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 49
VII
Assim que o irmão partiu, foi Dom Guterre
Contar logo ás senhoras quanto ouvira.
Achavam-se elas todas no discreto
« Quarto da fruta », vasta e fresca sala
De cujo teto, roxos e doirados,
Pendiam grandes, belos cachos d'uvas,
Futuro mimo de hibernais merendas.
Fiava Dona Mór ; Beatriz, atenta,
Bordava ao bastidor um brasão d'armas,
Na argêntea lhama dum xairel de gala,
E Dona Yseu tocava a dobadoira . . .
Ao contrário do que ele supusera,
A notícia trazida pelo crúzio,
4
50 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Longe de as fazer rir, deixou nas damas
Uma funda impressão terrificante.
Debalde Dom Guterre as excitava,
Tecendo sobre o caso mil facécias,
Que da esposa e da filha rudemente
Os sensíveis ouvidos melindravam,
Como anedotas vãs, inoportunas,
Contadas numa câmara mortuária.
Dona Mór, com o cenho carrancudo,
Acremente falava da imprudência
De dar poisada a um desconhecido;
A velha Dona Yseu, dissimulando
Toda a perturbação que lhe ia n'alma,
Murmurava palavras de esconjuro ;
E Beatriz, pensando na delícia
De se ver no mosteiro dos seus sonhos,
Bem longe das torpezas desta vida,
Distraída, picava-se co'a agulha
E no lenço enxugava o dedo em sangue . . .
Desapontado então e acastelando
Graves e filosóficos juízos
Sobre a simplicidade das mulheres,
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 5l
Foi-se o velho d'ali e encaminhou-se
Para o quarto de Sancho a passos lentos. . .
Era excelente o humor que nesse instante
Animava o mancebo. Muito embora
Quatro dias houvessem deslisado
Sem que ele visse a delicada prima,
Sem lhe ter escutado a voz ao menos,
Funda alegria lhe doirava o peito,
Nascida do palpite inexplicável,
Palpite que era quase uma certeza,
De que veria em breve os seus anceios
Docemente escutados, de que em breve
Co'a sua linda noiva ajoelharia
Aos pés dum altar em cujo supedaneo
Dom Bento da Santíssima Trindade,
Resplandecente d'oiro e de diamantes,
Lhes lançaria, sumptuoso, a benção,
Ao cristalino repicar dos sinos . . .
Nesses sonhos d'amor se deliciara
Sancho durante passageiras horas,
52 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
E delles viera numa plenitude
De alegria que, ardente, resumbrava,
Ao falar com o sogro presuntivo,
P'la animação dos olhos e dos gestos
E sobretudo p'la eloquência estranha
Que fazia faiscar suas palavras.
Resvalara a conversa para a luta
Ferida em Toro havia pouco tempo,
E como o velho desejasse muito
Notícias ter da épica aventura
De Duarte d' Almeida, o bravo Sancho,
Que desse lance fora testemunha,
Tudo pintou em pinceladas vivas,
Pondo viva defronte do fidalgo
A admirável figura do alfer's-martir,
Cheio de heróico ardor, cheio de sangue,
Segurando com os dentes e com os cotos
A bandeira da pátria lusitana,
Emquanto as suas pobres mãos cortadas,
Brancas, exangues como lírios doentes,
Pisadas eram pelos inimigos
Que de roldão fugiam desvairados.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 53
Enaltecendo a alheia valentia,
Sancho, inconsciente, enaltecia a sua,
Tal o calor com que evocava aos gritos
Os feitos de maior heroicidade.
Ouvindo-lhe a espantosa narrativa
Em que transparecia, pura e clara,
A beleza sublime da sua alma
Ao mesmo tempo ardente e compassiva,
Mais Dom Guterre achava calumniosa
A suspeita aventada por Dom Bento,
E mais se lhe arreigava a doce idêa
De fazer desse nobre cavaleiro
O noivo-redentor de sua filha.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
VIII
No entanto, as três senhoras aterradas
Com o que Dom Guterre lhes dissera,
Interrompido haviam seus trabalhos
E cada uma delas, recolhendo
A sua própria alcova, procurava
Na meditação grave e no silêncio
Qualquer meio eficaz de defender-se
Das tentações do joven desterrado.
A altiva Dona Mór, em cujos olhos
Crescera a glacial severidade
Com que os seus familiares oprimia,
Era uma dama de altas, intangíveis
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 55
Mas frígidas virtudes. Orgulhosa,
Seu orgulho tolhia na sua alma
O florejar dos sentimentos meigos.
De mães e esposas sempre claro espelho,
Nem uma vez a sofreada estima
Que votava ao marido afectuoso
Se abrira num sorriso de ternura ;
E o invariável beijo que ela punha
Na ebúrnea testa da graciosa filha,
Quando a loira Beatriz ia deitar-se,
Tinha a dura, metálica frieza
Dum firmai carregando em branda cera,
Era como que o selo com que á noite
Invariavelmente chancelava
Seus direitos de mãe e de senhora.
D'alma e corpo insensível, hibernando
Em permanente e rígida apatia
De sentidos, jamais se lhe exaltara
Um desejo no corpo, um anceio n'alma,
Jamais se lhe abrasara o frio sangue
Na visão dum capricho adulterino ;
E havia então de ser agora, quando
56 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Se acercava a velhice, após tão lisa,
Tão serena e tão límpida existência,
Que ela, esquecendo tudo, desceria
Do inferno os degraus incandescentes,
Por duas mãos infames arrastada ?
Não 1 Não era possível !
— « No entretanto, *
Pensava Dona Mór, « se nenhum medo
a Tenho dos homens, já não digo o mesmo
« Das manhas e artifícios do Diabo,
« Que entrando em severíssimas clausuras
n E alcançando recônditos cenóbios,
« Tanta ve% ja$ ruir da castidade
« As mais inexpugnáveis fortalezas !
« E pode alguém ter dúvidas acaso
m Sobre a origem satânica do torpe
«r Do execravel poder das mãos de Sancho ? »
Estas razões seguindo, a nobre dama
Comsigo mesmo ali determinava
Partir co'a filha para a sua quinta
De Vinhas Mortas, caso Dom Guterre
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 5"]
Não despedisse em vinte e quatro horas
O moço dos lascivos sortilégios.
Dona Yseu de Aboim, vetusta dona,
Se os não tinha, roçava p'los setenta,
Circumstáncia cruel que deveria
Excluí-la dos p'rigos iminentes.
Mas costumada a ouvir a todo o instante
( Sem perceber a troça do estribilho )
Que estava otimamente conservada,
Que humilhava as mocinhas mais viçosas,
Intimamente emfim se convencera
De que as mãos liberais do bom Destino,
Dando-lhe uma infinita mocidade,
A tinham preservado da velhice,
Tal como haviam feito, noutros tempos,
Segundo a lenda resa, a Helena, a linda,
Láctea filha de Tyndaro e de Leda,
Que aos cem anos ainda possuia
As graças e a frescura dos dezoito.
Desde a sua longínqua puberdade
Sentira grande, decidida queda
Para os doces enredos amorosos ;
58 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
E mal via um varão, caduco ou moço,
Logo o desejo lhe assaltava o espírito
De lançar-se, arrojada, de cabeça,
Da paixão nos abismos mais profundos.
Finalmente casada com um primo
Molengão e enfermiço, cujo corpo
Era um canteiro eterno de leicenços,
O antegosado e anciado matrimónio
Foi-lhe uma decepção tristonha, amarga,
Uma rosa esfolhada ao ser colhida . . .
Enviuvou depois . . . Gentil viuva,
Em rigoroso dó, ficou á espera
Que a sábia Providência a desforrasse,
Trazendo-lhe p'la mão o Cavaleiro,
Esbelto e namorado, dos seus sonhos,
O alto Cavaleiro que devia
Abrasá-la d'amor, atravessando-lhe
O irrequieto sangue co'as faúlhas
Dos seus divinos beijos langorosos . . .
Porém a Providência nesses tempos
Já começava a estar um pouco surda . . .
Sempre á espera do Eleito da sua alma,
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 5o.
Esqueceu-se a viuva de que os anos
Iam passando inexoravelmente
Com asas nos seus pés ; e já dobrado
O tormentoso cabo dos sessenta,
Ainda Dona Yseu ia tão lesta
Atrás do loiro Amor, que muitas vezes
Dona Mór intervinha asperamente,
Machucando-lhe os loucos devaneios,
Que seriam, no povo divulgados,
O escandaloso escárneo da família.
Assim, nessa africana e longa tarde,
Emquanto Dona Mór e sua filha,
Cada uma em seu quarto, vão ideando
Traças subtis que possam defendê-las,
Encorajando a feminil tibieza,
Uma na prece humilde, outra no orgulho,
A velha Dona Yseu, como um castelo
Que, em vez de resistir, as portas abre,
Já se prepara para o sacrifício,
E querendo, vaidosa, que a derrota
Não venha surpreendê-la em desalinho,
Mas com o decoro, sim, de roupas brancas
60 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Próprio de sua ilustre jerarquia,
Dum velho e chapeado arcaz flamengo
Tira uma anágua de espumosas rendas,
Uma camisa de aracnídeo lenço,
Um par de meias, que, na mão premidas,
Duma noz o volume alcançariam,
E, completando o seu trajar de vítima,
Uns agudos chapins, uma radiante,
Bela touca de felpa d'oiro fiado,
E uma opa roxa, de veludo brando,
Com botões sumptuosos de ametista.
Quanto a Beatriz, assim que entrou na alcova,
Ante uma Virgem se ajoelhou, de prata,
Ingénua estatueta bizantina
De cabuxões e esmaltes enfeitada,
Que, havia muitos anos, a Rainha
Dona Filipa de Lencastre dera
A mãe de Dona Mór.
De mãos erguidas,
De comoção tremendo e de receio,
Com tal fervor jamais Beatriz rezara . . .
CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 6l
Mas emquanto que as preces dessa alminha
Noutros momentos de tristeza e angustia
Logravam animar a imagem santa
Que lhe sorria bem visivelmente
Com promessas suavíssimas de amparo,
Desta feita, por mais que a virgem loira
Suplicasse e gemesse, de joelhos,
A Mãe de Deus quedava-se indif rente
Com a boca cerrada e os olhos quedos.
Essa figura bela e compassiva
Que tanta vez parcera humanizar-se
Tal como se o metal de que era feita,
Em nervos, carne e sangue se mudara ;
Essa figura que, em passados dias,
Toda animada p'la divina graça,
Palpitava qual viva creatura,
Envolvendo a donzela suplicante
Em doces véos de compaixão celeste ;
Essa figura, agora, no momento
Em que Beatriz se via arrebatada
Num redemoinho de aflição suprema,
02 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Inexpressiva, inerte, cega e muda,
Era somente uma preciosa alfaia
Anquilosada nas severas linhas
Da sua fria, hierática atitude.
Arremessada do jardim, de súbito,
Entra pela janela e cai no soalho,
Junto de Beatriz, cândida rosa
Em cujos róseos tons se acusa o pejo
Duma virgem no banho surpreendida.
Quem na atirou ? De certo foi Dom Sancho
Que, no desejo de alcançar depressa
De seus desejos lúbricos o fito,
Cansado de esperar que o curandeiro
Lhe desvelasse as mãos irresistíveis,
E pecadoramente, como aquele
Que duma ingénua creancinha abusa,
Fazia d'essa rosa imaculada
A embaixatriz de seus rogais intuitos.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 63
Ante esse lindo mas perverso ultraje.
Num ímpeto, Beatriz tomou a rosa
Para a lançar bem longe, mas vencida
Pelos lânguidos filtros que exalava,
Não teve mão em si que a não cheirasse
Mais de perto, e, ao chegá-la ao pé da boca,
Sentiu que uma torrente impetuosa
De fogo vivo lhe corria as veias,
E que uma chama lhe crestava os lábios,
Que entre as macias pétalas acharam,
Ainda quente e a palpitar, um beijo !
Lanceada de escrúpulos, tremendo,
Enojada de si como se acaso
Os dois braços violentos a cingissem
Dum sátiro baboso e cabeludo,
Então Beatriz caiu desamparada
Sobre o seu leitozinho de donzela,
Co'a impressão de que dentro do seu peito
Rudemente um moinho velejava
Dum furacão ás chicotadas doidas !
Aflitivo garrote de soluços
64 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Duramente apertava-lhe a garganta ;
Dentro da sua cabecinha loira
Estoiravam pelouros e bombardas ;
Rútilas chamas de infernal violência
Requeimavam, cruéis, seus olhos verdes ;
Até que enfim, com os ímpetos furiosos
Dum oceano irado rebentando um dique,
Toda essa dor profunda e lancinante
Rompeu num grande temporal de lágrimas.
Chorou . . . chorou . . . chorou como um menino
Perdido num pinhal á meia-noite !
Chorou ^ . . chorou . . . chorou . . . mas o seu choro,
A princípio convulso e desabrido,
Como se repuxasse fortemente
Do seu coração trémulo, apertado
Pela brônzea manopla dum guerreiro,
A pouco e pouco foi tomando um ritmo
Velado e manso, de silvestre fonte
Gotejando em fraguedos afofados
D'avencas verdes e sedosos musgos ;
A pouco e pouco foi amolecendo
Aquela cruciantíssima amargura,
Lançando enfim a extenuada moça
Numa quase gostosa sonolência . . .
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 65
Agora, dormitando, parecia-lhe
Que flutuava sobre nuvens brandas
Na mansidão violácea do crepúsculo . . .
A delicada rosa, que os seus dedos
Inocentes ainda seguravam,
De novo a perturbou, embalsamando-a
Numa onda de vagos amavíos . . .
Então julgou Beatriz ver no ar suspensas
Duas fosforescências que desciam
Sobre a sua cabeça, lentamente,
Tomando, lentamente, a estranha forma
De duas mãos singularmente belas . . .
P'ra ver melhor, Beatriz cerrou os olhos . . .
E as duas mãos desciam sempre, sempre,
Cada vez mais distintas e formosas,
Agitando-se em leves movimentos
De imploração fremente e apaixonada,
Como se fossem as dum anjo cego
A procura duma alma fugitiva . . .
Mãos de beleza nunca vista, feitas
Duma vaga matéria luminosa
Par'cendo ao mesmo tempo astros e flores,
Movendo-se num halo de perfumes
E desenhando nos macios gestos
66 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Promessas, que eram hinos de ventura,
Súplicas, que eram beijos ajoelhados,
Bem via Beatriz que mãos tão lindas
Não as tinha creado o escuro inferno,
Mas que eram lirios, sim, enraizados
Num puro coração que Deus enchera
De transcendentes sonhos de Beleza !
E as mãos desciam sempre, e já tão perto
Do rosto estavam da gentil dormente
Que o bafo dela refluía delas
Escaldando-lhe as faces pudibundas.
E as mãos por fim tocaram-na ! em tão doce
Tão delicada e lânguida caricia,
Que Beatriz estremeceu ditosa
E caiu num delíquio, qual se fora
Levada ao Paraíso pelos anjos . . .
Mas, repentinamente, abriu-se a porta
E de candil na mão, eis que Ana Mosca
Entrou para vestir a sua jóia.
Do seu bem curto sono estrovinhada,
Semi-tonta, Beatriz desceu do leito,
E alisando a lã alva do vestido,
CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 67
Que a pressão do seu corpo amarfanhara,
Dessa lã lhe par'cia levantar-se,
Ás ligeiras pancadas de seus dedos,
Uma pulverescéncia luminosa,
Talvez a poeira d'oiro do caminho
Dos amorosos sonhos, onde andara
E donde agora vinha outra, sentindo
Dentro dum corpo novo uma alma nova.
E olhou p'ra a Virgem novamente : e a Virgem
Sorriu-lhe cheia de materna graça,
Encorajando-lhe a paixão nascente
E aconselhando-a a ajoelhar submissa
Aos pés do Amor que, perto, lhe acenava
Com uma capela de inocentes rosas.
Então Beatriz, chilreando, entreabre um cofre
E dele tira, já vaidosa e rindo,
Uma crespina de custosas pérolas,
Dois anéis resplendentes de diamantes,
68 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
De rubis uma dupla gargantilha,
E pede a Ana o seu vestido verde,
Feito de tesa lhama em cujo fundo
Grandes pinhas refulgem d'oiro ardente.
— « Pentêa-me depressa e põe-me linda t »
Diz Beatriz, sentando-se num banco
De morado veludo recoberto.
E a boa da Ana Mosca, atarantada
Com aquela mudança repentina,
Entre os dentes meteu o pente ebúrneo
E começou a desfazer-lhe as trancas . . .
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 69
IX
Nessa noite, ao entrar na vasta sala
Onde a opípara ceia fumegava,
Não se conteve o ilustre Dom Guterre
Que não soltasse logo uma sonora
E retumbante exclamação de pasmo,
Vendo, ao ruivo clarão bruxoleante
Dos tocheiros chumbados na parede,
O faustoso trajar das três senhoras,
Que ali estavam de pé, hirtas e mudas,
Numa pompa de boda principesca.
Todas elas, vestindo-se p'ra a ceia,
O pensamento tinham posto em Sancho,
Até a fria Dona Mor ! . . . e todas,
Não vendo que dess'arte trairiam
Os seus mais escondidos sentimentos,
70 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
E entregando, indefesa, a consciência
A implacável força do destino,
Todas elas se tinham preparado
Com tão dengues apuros de elegância
Como se cada uma nessa noite
Bailar devesse nos salões da corte.
— « Mas que é isto, Senhoras ? Temos festa t
Dizia Dom Guterre examinando-as :
« Virá el-rei cear hoje connosco ? »
E em seguida, mirando-se a si próprio,
Continuou : — « Mas eu é que não devo
« Ficar nesta pobreza de beguino !
« Dae-me uns momentos, que vou pôr depressa
« O meu pelote novo, a adaga d 'oiro,
« E o meu chapéu melhor, o de penacho ! »
Fez menção de sair : mas de repente
Uma idêa o picou, áspide viva,
Petrificando-o ali e incendiando
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 'Jl
Seus olhos que se encheram de coriscos.
Da velha Dona Yseu não se admirava ;
Mas da esposa e da filha ! Quem diria
Que tão pudendas, tão discretas damas,
Renegando, insensatas, num momento,
Todo um passado dMionra e de pureza,
Logo ao primeiro aceno do Diabo,
Sem resistência se lhe entregariam,
E em vez de erguerem frios baluartes
Contra os assaltos da lascívia impura,
Com tal despejo ao seu encontro iriam
Aliciantes galas ostentando ?
Doido furor lhe requeimava as fontes :
Dommou-se, porém ; encaminhou-se
Para a mesa e, chamando a activa serva,
Que a capricho também se ataviara,
Friamente lhe disse, d'olhos baixos :
— « Chama o senhor Dom Sancho e serve a ceia \ »
Quando Dom Sancho entrou airosamente,
Envolto num tabardo de veludo,
72 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Todos viram a íntima surpresa
Com que ele olhava a demudada prima
Em cujo seio virginal, segura
Por um broche de pérolas, sorria
A rosa que o mancebo lhe atirara.
Abancaram á mesa silenciosos . . .
Ana Mosca servia, e Dom Guterre,
Mexendo a canja e recalcando os ímpetos
Que o coração inquieto lhe infernavam,
Perguntou de repente ao desterrado :
— « Com tamanho calor, que significa
« Esse tabardo preto ?
— « Qui? fa^er-vos
« Uma surpresa ! » diz o moço, erguendo-se ;
E então, lançando fora a negra capa :
— « Vede como já tstou são e escorreito !
E estendeu sobre a mesa, nuas, brancas,
As suas belas mãos sem ligaduras !
A torre de Babel, p'la vez segunda,
Parecia ruir naquela sala,
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS JO
Tal o terror, a confusão e os gritos
Que a suculenta ceia interromperam.
Dona Mór com as mãos tapava os olhos ;
Desmaiando, Beatriz no chão fazia
Rolar dois cuvilhetes de gelêa ;
Ana Mosca, sem tino, pespegava
Com um leitão assado no regaço
Da pobre Dona Yseu, que, vendo o bicho,
Julgou ver, tão grande era o seu desvairo,
Um fructo já dos seus novos amores ;
E Dom Guterre, doido, enfim rendido
Aos prudentes avisos do irmão crúzio,
— « Fujam ! Fujam 1 » dizia ás três senhoras ;
E ao mesmo tempo, como um Deus irado,
Cerrando os punhos, espumando, aos urros,
Dando patadas que eram terramotos,
Fazia cachoar sobre Dom Sancho
Lufadas de praguentos vitupérios :
— « Fora ! Fora daqui, vil castelhano,
« Que assim pagas a minha caridade,
« Tentando deshonrar tão nobre casa I
* Fora, vil corruptor ! »
Debalde Sancho
Pedia a explicação dessa tormenta,
74 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Dessa onda de insultos que o afogavam ;
O velho não no ouvia, e arrebatado
P'la ira mais fremente, ei-lo que rompe
A gritar aos criados que se acercam,
P'lo troar das injúrias atraídos :
— « Tirae da minha vista sem demora
« Essa imundície humana ! Vá, depressa !
n Amarrae-o sem dó, ponde-mo fora l
« Não quero vê-lo mais ! E lá na estrada
« Cortai-lhe as mãos obscenas ! Qiie ele veja
« Os seus cotos sangrar, por justa pena,
■ Como sangrando me pintou há pouco
« Os do alfer'smártir ! Não lhe ouçais as súplicas !
o Cortai-lhe as mãos 1 •>
Então Lourenço Gato,
Porqueiro atarracado, d'ar simplório,
Mas como Hércules forte e decidido,
Cumpre, ajudado pelos companheiros,
As ordens do senhor, levando Sancho
Cujos gritos inúteis breve expiram
Rija e barbaramente amordaçados.
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS -]5
X
No pó da estrada, á doce luz da lua,
Todo enleado de cordas, remordendo
A estopa que lhe serve de mordaça,
Debalde o pobre Sancho se contorce,
Cuidando ver chegar a todo o instante
O feroz abegão partido á busca
Do machado que as mãos deve cortar-lhe.
Range o portão da quinta, e dele avança
Não o servo cruel, mas sim o vulto
Airoso de Beatriz que, de joelhos,
Cai desvairadamente ao pé do amante,
E que ao desabafar-lhe a seca boca
De lágrimas piedosas lh'a refresca . . .
70 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Quer desatar-lhe os nós das rijas cordas,
Mas os seus dedos são tão delicados
E aqueles nós tão duros ! Porém, breve,
O industrioso Amor, que lestamente
Acode. sempre aos que lhe são devotos,
Ilumina-a : Beatriz abre a escarcela
Tira um punhado de moedas d'oiro,
Pelos creados as reparte e diz-lhes :
— « Desatai estes nós e retirai-vos t »
Lourenço, deslumbrado, os nós desata,
Com a sinistra o oiro abocetando,
Mas depois cái em si, e então objecta :
— « E o que hei-de eu responder quando o meu amo
« Me perguntar p'las mãos deste fidalgo?
— « Olha t » volve Beatriz, auxiliada
Novamente p'lo Amor, e aurificando
De novo as mãos do sórdido porqueiro ;
« Na forca ao pé do rio, hontem á tarde,
« Um enforcado vi ; vai lá, correndo,
« Corta-lhe as mãos e, ensopando-as ambas
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 77
« Dum animal qualquer no sangue quente,
« Leva-as depois ao teu senhor ! »
Lourenço
E os outros serviçaes, contando as moedas,
Partem, chalrando, em direcção do rio,
No instante em que o abegão enfim regressa,
Cantarolando, de machado ao hombro.
— « E agora foge ! » diz Beatriz a Sancho
Que as mãos lhe aperta comovidamente :
« Tens amigos em Coimbra, que um te esconda,
« E que amanhã vá ter comigo á igreja
« De Santa Clara, mal desponte o dia.
« Por êle saberás noticias minhas . . .
« Adeus l Tem fé em mim! »
Um longo beijo
Docemente casou aquelas almas
Sob a benção puríssima da lua . . .
Partiu Sancho.
Beatriz, voltando a casa,
Depois daquela mediação heróica,
78 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
Pé ante pé, parou junto da sala,
Onde seu pobre pai, numa estadela,
Amarrotado e triste, era o joguete
De dois contradictórios sentimentos :
Dum lado, a sua natural bondade,
Do outro, o seu orgulho vigilante.
Orgulhoso, par*cia-lhe ainda escasso
O castigo inumano que impuzera,
Mas, bondoso, acusava-se a si próprio
De tão duro ter sido e tão severo.
Umas vezes rugia, outras chorava . . .
E Beatriz, a meiga e compassiva,
Vendo-o sofrer assim, ânsias sentia
De ir socegá-lo, de contar-lhe tudo,
De lhe abrir os segredos da sua alma ;
Mas o receio de que aquela sanha,
Tudo sabendo, logo se ateasse,
Acobardou-a, cautelosamente,
Que um pai é muito, mas bem mais um noivo
E uma hora passou . . . até que ao cabo
Dessa hora secular, inextinguível,
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 79
Bárbara estropeada fez ouvir-se :
Os criados voltavam, tendo á frente
Lourenço Gato, que nas mãos trazia
Uma pequena trouxa ensanguentada.
— «O que irares ai? » grita o fidalgo,
Mais pálido ficando que um defunto.
— « Cumpridas são, senhor, as vossas ordens ! »
Diz o porquei; o.
Dom Guterre, erguendo-se,
Aperta as mãos convulsas na cabeça,
Quer falar e não pode, cai redondo
Na orgulhosa estadela de carvalho,
Bate fortes punhadas nos joelhos,
Pucha as guedelhas n'um furor leonino
E rompe enfim :
— «O que é que vós fizestes ?
« Pois não vis/es, estúpidos ! que eu estava
« Doido, doido de todo, quando há pouco
« Vos disse o que vos disse, delirando ?
« E cortastes-lhe as mãos ? Ah ! miseráveis,
8o O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
« E trajeis-me essas mãos ? Ah ! por piedade,
a Não rias mostreis ! Levai-as, escondei-m as ! *
Nisto soam ao longe três pancadas
No portão, ecoando cavamente,
Como argoladas lúgubres batidas,
No pavoroso dia do Juizo,
P'la própria mão de Deus, á brônzea porta
Do mausoléu dum imperador perverso !
— « Qiiem será ? Ide ver ! »
Passado um instante,
Volta um dos servos que a seu amo entrega
Uma carta selada.
Dom Guterre
Ergue-se lentamente, cambaleando,
Aproxima-se mais dum dos tocheiros,
Quebra o lacre que fecha o pergaminho,
E a meia-voz, sempre a hesitar, soletra
As seguintes palavras de Dom Bento :
Senhor Irmão : Tal peso estou sentindo
Sobre a minha consciência atribulada,
CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS Si
Que, não podendo ir já, visto que a regra
Me impede de sair caída a noite,
Venho por estas leiras desdizer -me
Do que sobre Dom Sancho vos disse hoje.
Folheando aquele livro de linhagens
Que me levara a imaginar Dom Sancho
Neto do antigo conde Dom Garcia,
Nele acabo de achar uma apostila
Donde se vê que o vosso hóspede ilustre
Nada tem de comum com o mesmo conde.
Confesso humildemente o meu engano,
E em pessoa, amanhã, mal rompa o dia,
Irei pedir perdão ao nobre moço
Do agravo que lhe fif por falsa crença.
Lívido, amarfanhando o pergaminho
Numa louca explosão de desespero,
Torcendo as mãos, o desvairado velho
Grita para os atónitos criados :
— « O que eu fi% ! O que eu fi% a um inocente !
« Por verdade aceitando uma calúnia,
« E uma calúnia pueril t sem mesmo
a Primeiro o ter interrogado e ouvido,
6
82 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
« Eis que de raiva num fatal assomo,
« Nutn incendiado acesso de loucura,
<• Lhe fif cortar as mãos, como se o pobre
a Fosse um vil rogador ou um parricida l
« Mas que fadeis ai? Ide buscá-lo !
« Ide l Correi I Traçei-mo sem demora t
« E não no magoeis, tende cuidado !
u Vamos ! Trajei-mojá! E tu, Lourenço,
a Corre a Coimbra, chama quem no cure,
« Chama um fisico, dois . . . quantos achares ! »
Mas Beatriz, surgindo de repente,
Beatriz que tudo ouviu, chorando e rindo,
Corre a abraçar seu pai :
— « Meu Pai, sossega !
« Sancho, o querido Sancho da mxnKalma,
« Nem uma gota só perdeu de sangue !
« Mandaste-lhe cortar as mãos, é certo,
<• Mas eu, ouvindo a bárbara sentença,
« Corri atrás dos servos que o levavam,
« Salvei-lhe as mãos p'las quaes eu dera as minhas,
« E para te enganar, disse a Lourenço
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 83
« Que viesse entregar te as dum enforcado
« Que eu tinha visto a baloiçar na forca ! »
— « Será verdade, filha, o que me di^es f
Pergunta D. Guterre : « Mas aquelas
( E aponta para a trouxa ensanguentada )
« Inda tintas estão de sangue fresco !
« Mas ê dum galo ! » dif Lourenço Gato.
E Beatriz prosegue carinhosa :
— « Enganámos-te Pai ! mas tu perdoas,
« Não é verdade ? Foi por bem o engano,
« Qjie tu não eras tu dando tal ordem ! »
— « Ah ! Deus te pague, filha da minJi 'alma,
« Qiie, salvando-o, a mim próprio me salvaste,
« Porque se êle morresse, eu morreria
« Devorado de penas e remorsos !
« Mas onde è que êle está 1 Qitero pedir-lhe
84 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
a De joelhos, sim, filha, de joelhos,
« Que me perdoe, que esqueça o que lhe disse,
« Que tenha dó de mim ! Quero abraçar-vos,
« A êle e a ti no mesmo estreito abraço !
« Mas onde é que êle está ? Onde está êle f
— « Não sei, não sei ...» diz Beatriz corando
« Não sei . . . mas amanhã, de manhãsinha,
« Logo que rompa o sol heide traçer-to,
« Para que tu nos abençoes a ambos ! »
Pae e filha abracaram-se chorando
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 58
Xí
Sancho e Beatriz casaram . . .
Alguns dias
Depois da alegre e sumptuosa boda,
Por mansa e rósea tarde de setembro,
Dom Guterre e Dom Bento caminhavam
A beira do Mondego, conversando
Sobre coisas da sua mocidade,
Quando entre os salgueirais viram ao longe
Sancho e Beatriz que iam de braço dado . . .
E o crúzio exclama :
— « Como sao felizes !
« E pensar eu que só por um milagre
« Ê que não destrui tanta ventura !
« Eu è que merecia as mãos cortadas !
86 O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS
« Não digo as mãos, mas, sim, estas orelhas
« Que surdas sejam se não cobram tino !
« Vá lá a gente acreditar naquilo
« Que o mundo di% ! A vof do mundo é falsa,
« Não é a vo% de Deus ! Dá-nos por tolos
« Os que menos o são, e por virtuosos,
« Ladrões capares de roubar seus filhos !
« Eu é que tenho sido um bom palerma,
« Acreditando em tudo o que me di^em . . .
« Mas agora já sei, ninguém me engana !
« Do Prior-mór de Santa Cru;, dipa-se,
« Antes de o escolhermos, que era um sábio
« E mais que um sábio, um santo ; eis se não quando
« Nos sái, assim que ao báculo se arrima,
« Além dum mariola, um grande bruto ...»
Escurecia . . .
Sempre conversando,
Os dois irmãos voltavam para casa
Quando os dois noivos foram ter com eles,
Rompendo alegres dentre madresilvas ;
Rio acima singrava um barco á vela ;
E das Trindades o saudoso toque,
O CAVALEIRO DAS MÃOS IRRESISTÍVEIS 87
Alagando de unção religiosa
As ínsuas de nebrina fumegantes,
Vibrava ali bem perto, em Santa Clara,
Num cristalino repicar de sinos . . .
Coimbra. 24-XH-1915.
ACABOU DE SE IMPRIMIR
ESTE LIVRO AOS DOZE DIAS
DO MÊS DE AGOSTO DE MIL
NOVECENTOS E DEZESEIS
NA TIPOGRAFIA DO EDITOR
FRANÇA AMADO, SITA Á
RUA DE FERREIRA BORGES
NA CIDADE DE COIMBRA.
ATTOAAnMflg
^sEs&rs-r&j-ajla.
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Castro, Eugénio de
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